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21 de jul. de 2010

O aviso da partidaPDFImprimir
Escrito por Paulo Valença   
Qua, 14 de Julho de 2010 14:45
 
Dois dias depois ao parar no sinal, Isaias é assaltado e ao tentar avançar o carro, na busca de fugir dos três adolescentes é então atingido na cabeça e no peito pelos disparos da arma de um desses, vindo a falecer, mesmo antes de ser conduzido ao hospital próximo.
Perplexa com a notícia, trêmula, Graciete então se lembra de que nos últimos encontros entre ela e Isaias para jantar e depois curtirem o amor no motel, ele dizia estar saudosista, com se estivesse se despedindo. 
- Se despedindo...
A mão de longos dedos então buscando o lenço na bolsa enxuga as faces e os olhos nublados pelo choro da saudade e do entendimento tardio da verdade, cruel verdade.


Lembra-se.
O pai se acordava de madrugada.
Com os passos duros cortava o corredor, a sala conjugada, adentrava no banheiro, onde lavava o rosto, escovava os dentes e retrocedendo a sala, sentava-se a mesa, aguardando a refeição.
A mãe já então estava na cozinha, atrás da casa, fritando ovos, enquanto a água fervia com o café.
- Tá quase pronto, José.
O sorriso no rosto magro, moreno, de aquiescência e a voz grossa:
- Tudo bem, Maria.
Mesmo deitado, parecia-lhe vê a cena. Depois, as passadas novamente cruzavam o corredor, a outra sala e deixavam a casa. No silêncio do dia que despontava, escutava bem o ploc-ploc cadenciado dos pés descendo a rua estreita.
Ficava também ouvindo novos sons dentro das últimas trevas da madrugada. Outros passos. Vozes. Risadas. Um cachorro latindo num quintal circunvizinho. O dia aos poucos nascendo.
Logo, comia o pão com manteiga e café.
- Meu filho se cuide para não chegar atrasado na escola.
- Sim mamãe.
Obediente. Respeitoso. Apressava-se.
Hoje... Por que a repentina recordação? Dirige. Ultimamente, está assim saudoso. Sintoma da idade, essas lembranças?
- Bem provável.
Sorri, ante a conclusão e acelera, aproveitando o tráfego descongestionado.
O sol recém-nascido banha as residências nas laterais, com pedestres apressados nas calçadas. Aos poucos, carros e motos em número maior circularão aqui na Avenida Hildebrando Vasconcelos,  na marcha natural do novo dia.
Tudo passou. Está “maduro” casado. Sem filhos. A mulher numa cadeira de rodas. Desfigurada pela obesidade que a domina ante a acomodação do corpo de pouco movimento. O pai ainda está vivo. Calado, aliás, sempre foi de pouco falar. Contido em si mesmo. Isolando-se de tudo. A mãe tristonha, magra, movendo-se devagarzinho, a voz trêmula.
- Nunca mais apareceu, meu filho...
- É a luta mamãe. Como está a senhora e papai?
- Tá tudo bem, com as cabeças nos lugares!
O sorriso dos lábios finos. O brilho nos olhos de repente outros, como renascidos.
- Senta aí meu filho.
Obedece. E o pai aonde está? Indaga:
- Cadê papai?
- Foi dá umas voltinhas por aí. È o novo hábito dele agora, sair de tardezinha.
- Entendo.
Meu Deus como tudo se transforma. Como o tempo passa ligeiro! Saber que foi menino, que despertava com os passos duros do pai, se preparando para sair, ir trabalhar. Os sons da rua defronte...
- E a Luzia como está?
- Naquilo mesmo, com a mocinha, a Irene, cuidando dela... É a gente tem que se resignar.
O silêncio da compreensão, onde as palavras são desnecessárias. Os rostos que não se encaram.
O tempo que corre, indiferente a tudo.
O portão largo. Buzina, anunciando-se.
O vigilante saindo da portaria abre-o.
- Bom dia, Seu Isaias.
- Bom dia, Tonho. Tudo bem por aqui?
- Tá, tudo OK, chefe.
O carro transpõe o portão, ante o olhar do funcionário humilde, contido na função de zelar, servir os superiores.
Adiante, o veículo pára no estacionamento destinado aos diretores e chefes de seções da grande empresa.
O vigilante pensativo retrocede a portaria.


- Hoje estive pensando...
A jovem morena, esguia, bonita, fita-o, em silêncio. Ele continua falando:
- Lembrando-me do tempo de menino, quando acordava com o meu pai se preparando para o trabalho. Seus passos fortes pelo corredor. Minha mãe à beira-do-fogão, cuidando do café...
Pausa. A moça entende-o. Nos últimos dias, o Isaias está com essas recordações. É o mal da idade...
Sorri, com a conclusão.
- Sorrindo de quê, Graciete?
- Nada não. Pode continuar falando, me desculpe.
- Eu estou ficando saudosista, como se estivesse me despedindo, tivesse recebendo um aviso...
A mão de longos dedos aí pousa no dorso da outra, em gesto de solidariedade, força para livrá-lo do pessimismo. E afagando-a, sente-a fria, trêmula.
- Isaias esquece o passado. Deixa de besteiras. “Bola pra frente”, pensa positivo, homem!
Ele lhe sorri, agradecido às palavras solidárias e, reagindo, livrando-se do passado:
- Peço outra dose?
- Pede.
O braço se ergue e a mão acena ao garçom, chamando-o.
- Pois é, morena bonita, vamos jantar e em seguida...
- Nos amar!
Sorriem coniventes, envolvidos pelo laço da amizade.
Dois dias depois...

Lu Dias BH disse:
Paulo Valença O escritor dos contos curtos.
Você é o escritor de seu tempo.

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