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22 de fev. de 2011

CANÇÃO Eugênio de Andrade /DEA


CANÇÃO

Eugênio de Andrade


Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da nadrugada.

Tu eras água.
Água do mar se te beijava
Alta tôrre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.

Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.

Mas do nome
que maio decorou,
nem a côr
nem o gôsto me ficou.

EEN LIED VOOR MARGARETHA David Mourão Ferreira/DEA





EEN LIED VOOR MARGARETHA

David Mourão Ferreira


Tu vens de terras de Holanda,
mas tens a carne morena,
E em vez da serena, branda
postura que o Norte manda,
teu corpo se desordena
à carícia, por mais branda...
Tu vens das terras de Holanda...

Eu venho de Portugal:
o mesmo é dizer que venho
de longe, do litoral,
e um sabor, no corpo, a sal
definiu meu Fado estranho.
Aqui me tens, donde venho:
eu venho de Portugal...

Trago nos lábios o Mar,
cheio de vento e de espuma...
E tu mo virás roubar!
- Ai descampados ao ar,
onde houvera ventos, bruma! -
Com saudade hei de lembrar:
tinha nos lábios o Mar...

Hei de lembrar e sofrer
o que fôr perdendo aqui...
Mas um colo de mulher
tudo merece, e requer
o abandono de si...
Quem me dera que por ti
venha a lembrar e sofrer...

Tu vens de terras de Holanda,
eu venho de Portugal:
cada um de sua banda...
Sabe o Destino o que manda,
quer p'ra bem ou quer p'ra mal...
- Não mais as terras de Holanda
e areias de Portugal!

ROTEIRO João Rui de Sousa /DEA


ROTEIRO

João Rui de Sousa



Meu jeito visionário - meu astrolábio.
Meu ser mirabolante - um alcatruz.
De variadas coisas fiz a minha esperança
e sempre em várias coisas vi a minha cruz.

Aos padrões que em vários pontos encontrei
na rota íntima de vestes tropicais
eu dei as mãos, serenas e intactas,
as minhas dores mais certas e reais.

Nos vários sítios que - abismos -
toldaram minha voz por um olhar,
eu evitei o perigo e os prejuízos
à voz feita de calma, meu cantar.

Aos rasgos que, de outrora, evocados
foram sempre pelo seu valor,
eu dei a minha tez de dúvida e de espanto,
o meu silêncio amargo, o meu calor.

E aos pontos cardeais que em volta, vacilantes,
desalentavam já meu ser cativo,
parei o gesto, roubei o pólo sul da esperança
como lembrança para um dia altivo.


POEMA PARA A NOITE Maria Teresa Horta/DEA


POEMA PARA A NOITE

Maria Teresa Horta

Beijo
o à vontade das mãos
na imagem dos homens

O oceano
por entre o oceano

a paz estagnada
no contôrno dos espelhos

Beijo-te
na terra à secreção
dos passos

ódios redondos
acuado de seios

a noite na espessura
quente
das almofadas sem manhã

a imortalidade
abortada
que mulheres conduzem
prêsas
pelo ventre e saciadas
de filhos

Beijo
o absoluto contido
nos objetos sem casta

a incerteza branca
das paredes
imóveis

a insalubridade arqueada
no silêncio espêsso
das portas sem casas
com jardins malogrados
no início do nada
como se depois das vertentes
árvores fôssem
chuva
ou nuvens fôssem árvores

Beijo-vos
a todos por de dentro
dos lábios

as línguas da areia
nas bôcas das praias

golfos quadrados
de alvorarem
barcos

barcos erectos
agressivos de mastros

A cidade é nossa

Beijo-te
na cidade
nas ruas onde carros
são flores
que crescem em ruídos
de palmas

Beijo-te
na sêde aguda
que gaivotas têm de céu
e de estátuas

estátuas anemia
de cabelos
em patamares de doença

missivas acres
de grades aciduladas

a água é no princípio
das palavras

veia fechada
saliente nas rochas

água vertebrada
com pulmões escondidos

Beijo-te
na água de caules
sucessivos

O grito é um navio
perdido
na memória

Beijo-te
no vidro

searas verdadeiras
de cristal p'lo
ódio

a batalha é o azul
que deixamos atrás

Beijo
a súbita vontade
da vigília dos partos
os suicídios moles
com precipícios vastos

as pedras castradas
nas retinas dos
gatos

horizonte
na distância onde o crime
acontece nas lâminas

Fatos inconcretos
na geometria
do mêdo

as viúvas são laranjas
vestidas
de encarnado

Beijo-te
esquecida na vertigem
das algas

o vento é oblíquo
nas âncoras antecipadas

as lágrimas
são incógnitas
na orgânica dos sons

Introdução às pétalas
na urgência da glória

abelhas saqueadas
na saliva ruiva
em poentes sem vértice
a boiarem na pele rugosamente
opaca
da lua

A nossa vontade
é nos ombros das plantas
orvalho de febre sem objetivo

Beijo-vos
no bosque onde o animal

é a penumbra
e os joelhos da luz

cogumelos de asfalto
no centro de um inverno
sem notícia nem espanto

Beijo-vos
prolongada de gerações
em silêncio

é para nós agora
a vez
das planícies que erguemos
pelas ancas
na curva onde o hálito
é ansiedade no homem

são para nós
as notícias de mortes

necessárias
na simetria do espaço

Beijo-vos
nos pulsos de naufrágio
circulares

a onda é um motivo
assimétrico de revolta

Fronteiras mutiladas
cedo
rente aos cais

Beijo-vos
na vontade de recomeçarmos
os olhos

os cavalos
são paisagens
e o neon é um cavalo
de mergulharmos os dedos

Beijo-vos
a todos nos meus lábios
onde antiguidade de manhã
é gaiola insubmersa
de nunca existirem passos