Pages

3 de ago. de 2011

ELA SEMPRE ACREDITOU....


Ela sempre acreditou que as cores da alvorada eram o que dava tom às suas pinturas, e dizia que já não via muita graça no resto. Voltar para casa era “coisa pra depois das seis, sua janela tem uma vista linda”. Eu também nunca reclamei dessa nêura. Apenas achava emgraçado como os olhos dela brilhavam para o amanhecer. Brilho que, em todos esses meses, nunca foi para mim.

Resolvi não mais competir e comprei um cachorro. E um Ipod. E uma câmera digital (para irritá-la e mostrar que a tecnologia digital faz mais cores que aqueles pincéis sujos). E um laptop, para tomar café “pagando de hype”, segundo ela. E todos os CDs do mundo, via Soulseek e Torrent, é claro. E mais umas quinquilharias eletrônicas que hoje me tornam um homem contemporâneo culturalmente inserido e mercadologicamente visado mais completo. Quando ela foi embora, não consegui pedir para ela ficar. Estava postando no meu blog.

Ela sempre volta.

Passou-se um ano nesse ritmo: ela viajava pelo país todo. Eu, em casa, recebendo emails (foi um avanço para ela, que percebeu que andar por aí com o meu laptop era mais barato que pagar interurbano). Ela sempre mandava fotos também, tanto das obras quanto “do melhor lugar para se assistir ao nascer do sol aqui neste fim de mundo”.

Quando ela voltava para casa, era praticamente mecânico: sexo, jantares com os amigos artistas dela, mais sexo, ida ao Aeroporto. Dava saudade de brigar com ela.

Na última vez que ela voltou, disse que havia sido convidada para gerenciar permanentemente um acervo em Paris. Paris?

— É. Uma oportunidade muito grande para mim, você não acha?

E aí ela foi. E eu fiquei triste por um tempo até entender a regra número um da contemporaneidade: nada é do jeito que é por muito tempo.

Tudo fica obsoleto.

Ela sempre me contrariou. E acho que, desta vez, ela tinha um pouco de razão: sempre disse que não éramos “feitos de plástico com telas de cristal líquido” e que seria bom eu saber diferenciar.

A vida é mesmo um eterno aprendizado. E ser contemporâneo seja, talvez, ficar se contradizendo o tempo todo.

(trechos do texto de Luiz Yassuda)

0 comentários:

Postar um comentário